31 março 2011

Luto

Fim da madrugada - arquivo pessoal


Ele morreu.
Ele morreu há meses.
Mas por muito tempo ela o manteve vivo. Vivo-morto em sua própria vida-morta. Fotos, mensagens, vozes, objetos, buscados de tempos em tempos, como num teste para ver se conseguiria trazê-lo de volta à vida, ou trazer-se de volta à vida, mesmo sabendo que a morte tinha sido o resultado de um processo de longo e irreversível adoecimento. Irreversível? Ela se perguntava sempre...
Difícil aceitar a morte, mesmo seguindo a própria vida. Vida morta. Vida quase-vida.
Difícil acreditar que ele pudesse ter uma vida após a morte. Morreu, acabou? É assim? Dúvida e incredulidade...
Depois de muito buscar sua presença - em vão, afinal nunca seria uma presença presente, mas sim uma presença morta, presença-ausência - percebeu que a própria vida-morta que vivia se devia à morte-viva dele. Constante morte, viva em sua vida. E que de tanto cultivar a morte em vida, não tinha condições de viver a vida-viva que a esperava.
Resolveu então ritualizar a morte. Os povos são sábios: há milênios enterram seus mortos (ou descartam seus corpos, de maneiras diversas), retirando-os de suas presenças, e ritualizam a morte. Rezam, dançam, bebem. Por horas, dias, varia... Marcam o fim. Finalizam a etapa, e assim abrem espaço para uma nova.
Entrou em quarentena. Quarenta dias relembrando o início e o meio, olhando atentamente para o fim e convencendo-se de que após o fim há um recomeço. Parece loucura, olhar bem para a morte para que ela simplesmente vire as costas e dê lugar à vida. Parece ilógico - será que ao atentar para a morte ela não vai gostar ainda mais daqui e vai acabar ficando, fazendo de vez da vida-morta quase uma morte-em-vida?
Não. Melhor confiar na sabedoria milenar, transcultural e dar encaminhamento a essa morte de uma vez. Respeitar a morte - posto que é fato, visto que é natural - mas não cultuar o morto. Ele morreu. E merece também reviver em outro lugar, de outro jeito, numa nova oportunidade. Espera, sinceramente, que ele viva bem após a morte, onde quer que seja, fazendo o que fizer, da forma que for.
Mas ela quer, muito mais que isso, viver após a morte dele. Uma vida-viva, de presenças presentes, de sensações, cheiros, gostos, sons, texturas, movimentos, corações retumbantes, água, vento, sol. 
Sol.
Sol.
"Assim é você, dia de sol na minha vida nublada". ... Mas o sol se pôs. Já foi o anoitecer, a madrugada, a maior escuridão da madrugada. É momento de abrir os olhos na escuridão da madrugada e ver nascer, lenta e lindamente, o novo sol. 
O próprio sol. 
A própria vida.

07 março 2011

Úmido

Quatro Girassóis Colhidos - Tela 600 x 354 - OST - 1887 (VINCENT VAN GOGH)

Naqueles dias chuvosos o céu branco reproduzia a luz fria da lâmpada fluorescente-hipnotizante, levando a mulher ao sono constante, mesmo depois de dormir por horas a fio.
As janelas necessariamente fechadas impedindo que a umidade estragasse os móveis novos e o chão do apartamento alugado impediam também que a mais leve brisa entrasse e trouxesse algo de vida para a casa.
Nem mesmo as flores recém adquiridas conseguiam dar à casa cor.
Os únicos sons do ambiente vinham das gotas da chuva incessante no telhado vizinho e dos suspiros da mulher, impaciente com a clausura imposta pelo clima típico do mês de março.
Sentia-se como um fungo.
Desejava uma casa na praia, a presença do sol, da brisa, de movimento, de cores outras além do branco.
Desejava a liberdade da integração com o mundo.
Era chuva demais para uma mulher tão girassol.