Era domingo. Não fazia sol, uma vez que as nuvens finalmente venceram a batalha naquela primavera estranhamente (extremamente) quente. O vento era fresco, mas não frio. Um dia perfeito para alguém que tem o corpo coberto de pelos e uma generosa camada lipídica sob a pele e que portanto sofria com o calor.
A Capivara morava num parque dentro da cidade. Era um parque especial, pois não havia grades lá. Só o que o separava do restante da cidade era a pequena faixa da lagoa, facilmente transponível para indivíduos que vivem originalmente em ambientes alagados.
Mesmo sabendo da possibilidade de sair do parque, essa não era uma atividade freqüente da Capivara. Gostava de sua comunidade, bastante populosa para um parque na cidade. Gostava das pessoas que passavam por lá, sempre respeitadoras. Achava até divertido ser fotografada por elas.
No entanto desde que seus filhotes nasceram a vida da Capivara tornou-se obrigatoriamente rotineira. Mamíferos têm essa desvantagem: a mãe precisa estar sempre por perto, a fim de garantir a sobrevivência dos filhotes. Sair ainda era possível, mas incrivelmente difícil. As conversas entre as outras capivaras giravam exclusivamente em torno do tema maternidade. A capivara macho já não era mais o mesmo da época da conquista. A Capivara sentia-se imobilizada, reduzida a um único papel: o de mãe.
Para a Capivara era complicado admitir isso. Era sua primeira ninhada, sentia que havia engravidado no momento certo: sentia-se madura, pronta para ter filhos. Sua ninhada havia sido comemorada entre as outras capivaras da comunidade, que não se cansavam de repetir que a Capivara havia nascido para ser mãe. Tudo conspirava para a felicidade, mas a Capivara não conseguia sentir-se completa com seus filhotes.
Ao mesmo tempo, de cada vez que imaginava o desmame dos filhotes e a possibilidade de viverem suas próprias vidas (muito antes do que estão acostumados os humanos), a Capivara arrepiava-se completamente e sentia-se ainda mais vazia.
Não sabia como resolver o conflito. Passara dias e dias pensando, enquanto observava seus filhotes brincarem na grama sob o sol quente.
Não chegou a conclusão nenhuma. Mas naquele domingo nublado e fresco pegou seus filhotes e atravessou a faixa da lagoa. Não comunicou a ninguém onde iria. Caminhou pela margem, cuidando para que os filhotes não caissem nos trechos mais poluídos da lagoa mal tratada pelos humanos. Andou, sem rumo. Chegou até um ponto em que era possível ver grande parte da lagoa, inclusive o parque.
A Capivara ficou ali, sentada às margens da lagoa, com os filhotes protegidos sob a sombra formada por seu corpo. Pessoas passavam, algumas paravam, mas a Capivara estava imóvel. Naquelas horas - sim, a Capivara passou horas fora do parque com os filhotes - após tantos pensamentos, tantas comparações felizes e infelizes, ficou muito claro para a Capivara que aquela era sua vida. E que se não houvesse escolha quanto ao tipo de vida que poderia ter, a escolha quanto a sofrer ou desfrutar das peculiaridades de sua vida era bem palpável.
Ao entardecer a Capivara voltou com os filhotes para o parque.
Segunda-feira seria um novo dia.
Vívian Marchezini Cunha - outubro de 2008
Imagem: retirada deste blog
Nenhum comentário:
Postar um comentário